terça-feira, 29 de outubro de 2013


Um problema Linguístico "escondido" atrás de uma questão de Física
Por Ronaldo Novaes, mestrando em Música pela USP


Uma das maiores dificuldades e belezas de nossa Língua Portuguesa, é sua "imprecisão" científica. A Ciência, sobretudo no campo das Exatas, necessita, sempre, de termos precisos e exatos, sem dar margens à ambiguidades. Por outro lado, a Linguagem Poética, necessita desta "plasticidade" e capacidade de estar sempre aberta à novas configurações semânticas e metafóricas. E aqui consiste um dos maiores tesouros da Língua de Pessoa e Machado de Assis. 

Porém, ao não saber manusear corretamente a Língua de acordo com o "âmbito" (ou como diria Aristóteles em seu Tratado de Retórica, ao "decoro", isto é, aquilo que é adequado à ocasião ou lugar), ou seja, a Área de Conhecimento, corre-se o risco de incorrer-se em erros como o caso da "questão 82" do ENEM/2013 (observe a imagem).

Um simples "do" (em italiano, sem acento, originário da primeira sílaba do nome "Doni" - de Giovani Baptista Doni, que substituiu o termo "Ut" - por ser difícil de entoar - do Hino de São João Batista, que representa a primeira nota da escala maior natural), ao ser traduzido para Português, se transforma em "dó" (oxítona, terminada em ó, portanto, com acento), tornando-se ambígua, pois, não mais representa apenas uma frequência da escala musical,  mas pode, também, significar "comiseração", "compaixão", "pena", ou seja, dó... 

E dó é o que todos nós, professores de Música, sentimos ao ler o enunciado elaborado por alguém que, provavelmente, desconhece a nobre Arte da Música. Também sentimos dó dos estudantes que enfrentaram tal questão e estão até agora, pensando na diferença entre um "dó central" e um "dó maior", que, como diria Aristóteles, pertencem a duas Categorias distintas do Pensamento Científico. 

Fig.1: dó central (dó 3)

O primeiro termo do enunciado, chamado de "dó central", diz respeito ao "dó3", ou, como é conhecido dos pianistas, "dó da fechadura" (por estar próximo, à fechadura do piano vertical - também chamado de piano de armário), já o termo "dó maior" (erroneamente citado), diz respeito à Categoria Harmônica, ou seja, a um "acorde", formado pela primeira nota da escala (também chamada de fundamental ou tônica), em conjunto com a terça e quinta notas da mesma escala. 

Por exemplo, partindo-se de uma escala diatônica de dó maior, isto é, "dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó", destacando-se a primeira, terceira e quinta notas, teremos: dó-mi-sol, ou seja, o acorde de "dó maior".



Fig.2: Acorde de dó maior (formado pelas notas dó-mi-sol)

A palavra "acorde" é assim chamada, porque tais notas, pertencendo à série harmônica (conjunto de ondas composto da frequência fundamental e de todos os múltiplos inteiros desta frequência), estão em "acordo", ou seja, estão em "harmonia". Ainda, amparado pelas Categorias de Aristóteles, poderíamos dizer que "acorde" é uma "substância", enquanto que "maior" diz respeito a quantidade. Neste sentido, "dó central" e "dó maior" pertencem a diferentes categorias, não podendo, JAMAIS, haver comparações entre si. Explico:

Como visto anteriormente, o termo "dó central" diz respeito à posição da nota no teclado, portanto, trata-se de um único som e sua respectiva posição no instrumento. Por sua vez, "dó maior", é assim chamado, "maior", por conter um intervalo de cinco semitons entre a fundamental (primeira nota da escala) e terça, isto é, dó-mi = terça maior; Enquanto, "dó menor", é assim chamado, "menor", por conter apenas quatro semitons, ou seja, um intervalo "menor" entre a fundamental (primeira nota da escala) e sua terça, isto é, dó-mib = terça menor.

Fig.3: Intervalo de terça maior - dó-mi (cinco semitons) 

 Fig.4: Intervalo de terça menor - dó-mib (quatro semitons) 

Terminologias Problemáticas

O uso do termo "dó central" diz respeito ao conhecimento "topográfico" do "tecladista", isto é, apenas instrumentistas de teclado (pianistas, cravistas, organistas), se utilizam METAFORICAMENTE do termo "central" para localizar o "dó3" da escala, em seu instrumento. 

O que significa que, para flautistas, violoncelistas, guitarristas, contrabaixistas, cantores etc. o termo "dó central" é irrelevante para a localização da nota. No entanto, esses músicos, já acostumados com as metáforas e analogias do metiê (ofício), sabem que o "dó central" diz respeito ao "dó3", podendo localizá-lo facilmente em seus respectivos instrumentos. O mesmo não ocorre no pensamento de um estudante, sobretudo, um aluno que nunca tenha estudado música - como é o caso da imensa maioria dos alunos que prestaram a prova do ENEM.

Nesse sentido, o enunciado mais adequado, deveria conter apenas os termos "dó3"  e "dó4" (próxima nota - no lugar do equívoco "dó maior"), pois, ao se valer do termo "dó central" (fazendo referência ao piano), exclui-se uma gigantesca parte da população que, talvez, nunca tenha tido a oportunidade de ver um piano de perto. Outro erro, já explicado, é a contraposição de Categorias distintas: comparação de intervalos melódicos (oitavas) com termos harmônicos (dó maior). 

Finalizando, o candidato que venha a se sentir prejudicado pela ambiguidade e erro da questão 82 do ENEM, pode, perfeitamente, partindo dos pressupostos aqui apresentados, solicitar que a mesma seja desconsiderada ou anulada. 

Indo um pouco mais além...

O equívoco demonstra a urgente necessidade de se levar a sério a proposta de Ensino de Música nas Escolas, não de forma, meramente, "lúdica" ou "intuitiva", como se vê em muitas propostas, ou, pior, como muitos dos nobres colegas pensam o professor de Música um mero "animador" de festas do calendário escolar. Além disso, pode servir como estímulo para que professores de Música, Física e Língua Portuguesa, debatam com seus alunos, as questões concernentes a tais matérias, enriquecendo-os nos que tange aos diversos saberes envolvidos.

Fica aqui, minha singela contribuição ao tema. 
Prof. Ronaldo Novaes (mestrando em musicologia)

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